Notas sobre zumbis – The Walking Dead e Kingdom

The Walking Dead e Kingdom são “séries de zumbis”. Apesar de completamente diferentes, o ponto de contato entre elas é que, nas duas, os mortos vivos representam e refletem o colapso da ordem social. A graça está na variação que cada uma delas oferece do tema.

Para começar, é curioso como, em ambas as sérias a irrupção dos zumbis é vista como uma doença (médicos e hospitais têm um lugar preponderante nas tramas); a quebra da ordem é associada a uma patologia altamente contagiosa, uma influenza social. 

Kingdom só tem, por enquanto, uma temporada de seis episódios. Sua duração e ambientação (numa Coréia pré-moderna, de nobres e camponeses) faz dela um pouco mais esquemática, de certa forma. O que se vê ali é o colapso da ordem social de um regime feudal, em que os nobres deixam de cumprir sua função de governar retamente e administrar a justiça. Na capital, o palácio real é tomado por conflitos entre facções rivais, agravado por um “mayordomo” violento e implacável e por uma rainha ambiciosa e maquiavélica. 

Na provínicia, a administração é corrupta e incompetente. Talvez pela estrutura rígida da ordem que é rompida e pela distinção mais “preto no branco” entre o certo e o errado, os zumbis de Kingdom têm algumas características interessantes. 

Em primeiro lugar, eles são ativos apenas à noite (quer dizer, mais ou menos, mas vou tentar evitar spoilers), rastejando durante o dia para hibernarem em lugares escuros. O caráter sombrio, obscuro, da desordem não poderia ficar mais obvio. Por outro lado, quando ativos, os zumbis de Kingdom são mais rápidos e ágeis do que os de The Walking Dead. Na Coreia feudal, os mortos-vivos são velozes a ponto de se emparelharem com humanos correndo. Os humanos mordidos também se transformam em zumbis muito mais rapidamente do que em The Walking Dead. O resultado cumulativo de todas essas carcterísticas é que, uma vez que a infestação tem início, ela rapidamente se transforma numa onda praticamente impossível de ser contida, mesmo atuando só à noite. A quebra da ordem em sociedades hierárquicas, com funções claramente definidas, é mesmo apocalíptica, parece ser a mensagem. 

The Walking Dead é uma série muito mais famosa e não vale a pena me estender sobre ela. Algumas notas:

A sociedade que entrou em colapso é igualitária e democrática. Mulheres e homens sofrem juntos, mas lutam juntos também, sem distinção de classes sociais. Os zumbis são mortíferos, mas lentos e sem qualquer coordenação. A mensagem parece ser: os “walkers” são uma ameaça a grupos pequenos e desordenados. O desafio dos sobreviventes é reconstruir uma sociedade ordenada e hierárquica. Divisão é fraqueza (não consigo deixar de ver ecos da Guerra Civil Espanhola, mas isso é outra história).
 
Finalmente, um outro detalha que me chamou muito a atenção quando vi a série, a ponto de comentá-lo com um amigo. The Walking Dead só funciona da maneira como está colocada porque se passa nos EUA, com seu arsenal de armas de fogo quase ilimitado à disposição de toda a população. Na série, fica claro que indivíduos desarmados não são páreos para os “walkers” (a despeito da katana e da besta ocasionais), ao mesmo tempo em que o poder de fogo acaba sendo um elemento de arbitragem entre os diversos grupos humanos que se forma após o apocalipse zumbi. Em outros países, grupos organizados que tivessem acesso institucional a armas de fogo (militares, policiais, narcotraficantes, senhores da guerra) sairiam com uma vantagem decisiva, tanto contra os zumbis quanto contra os demais humanos desarmados, o restante da população, basicamente. Assim, é interessante notar como The Walking Dead opera, ao contrário de Kingdom, dentro das premissas da própria sociedade norte-americana, armada e igualitarista. 

Solidariedade

Ainda a Leste, temos uma fantástica história contada a Tabucchi por Krzysztof Piesiewicz (o argumentista de Kieslowski). Um advogado, defensor oficioso dos presos políticos da Polónia comunista, evoca o seu papel fictício e ingrato; até que conhece outra função mais fictícia e ingrata, a dos cineastas estatais que filmavam o que quisessem, mesmo que fosse melindroso, mesmo que ficasse arquivado e censurado: os factos existiam, a memória virtual deles também, mas as pessoas não podiam saber disso. E então o cineasta tenta uma manobra mais radical, e filma julgamentos sem ter sequer película na câmara, filmagens fantasistas mas que ainda assim constituem uma espécie de memória. E que, intimidatórias, atenuam as sentenças dos condenados. (do texto “Presença da Noite”, de Pedro Mexia)

Livros do ano – 2015

Sem ordem de preferência, um top 5.

a) Les Particules Élémentaires e Soumission – Michel Houellebecq

Sobre o segundo, muito se escreveu no ano passado e a maioria o reconheceu, corretamente, como um grande livro, talvez profético. Mas é o primeiro a grande obra-prima de Houellebecq. Para espíritos fortes, o retrato de um fracasso, o fracasso de um projeto de civilização. 

b) Anna Karenina – Tolstoi. Lido na excelente tradução espanhola de Víctor Gallego.

c) Limonov – Emmanuel Carrère.

Sugestão do amigo Pedro Sette-Câmara. Um grande escritor encontra um personagem excepcional e decide escrever sua biografia. O personagem excepcional é, em sua própria definição, “o Johnny Rotten soviético” (errado, se fosse apenas isso o livro seria um tédio); o grande escritor happens to be filho de Hélène Carrère d’Encausse, da Academia Francesa e talvez a maior “sovietóloga” da França. O resultado, brilhante, é uma aula magistral sobre a composição  de uma biografia, além da melhor introdução possível aos primeiros anos da Rússia de Putin.

d)  O Castelo – Kafka. Na excelente tradução de Modesto Carone.

e) Dear Bunny, Dear Volodya – The Nabokov-Wilson Letters: Correspondence between Vladimir Nabokov and Edmund Wilson, 1940-1971. — Simon Karlinsky (ed.)

Não é preciso ser fã do crítico norte-americano nem do escritor russo para apreciar este epistolário. O mais divertido é o constante duelo intelectual entre os dois, respeitoso porém sem trégua. Wilson jogava em casa, geográfica e linguisticamente (as cartas começam com a chegada de Nabokov aos EUA), mas a erudição impressionante e o temperamento turrão de Nabokov frequentemente levam a melhor. Impressiona a generosidade do norte-americano, ajudando o russo a cada momento, chegando mesmo a buscar alguém para fazer uma resenha positiva para a New Yorker de um livro de Nabokov de que ele mesmo não havia gostado. Os apreciadores de poesia têm material para se deliciar nas incansáveis discussões sobre prosódia e métrica tanto em russo quanto em inglês. No fim, a nota triste da ruidosa ruptura entre os amigo por conta da inflamada sequência de réplicas e tréplicas públicas ocasionada pela publicação da tradução de Eugen Onegin por Nabokov em 1964. 

Bônus:

1) The Sicilian Vespers – Steven Runciman

Runciman me era desconhecido, mas o volume amarelado e pequenino da Pelican books que encontrei em um sebo estava barato e o tema anunciado na capa (“The rising which brought about the overthrow of the universal Papal monarchy”) me pareceu irresistível. História medieval, erudita, bem escrita e com ênfase em política e teologia. Tudo o que eu gosto. 

2) O Planalto e a Estepe – Pepetela

Já no finzinho do ano, decidi me inteirar um pouco sobre literatura africana em língua portuguesa. Comecei com os consagrados e, depois de um livro mediano de José Eduardo Agualusa (O vendedor de passados), topei com esta novela de Pepetela, contando a história do amor impossível entre um angolano e uma mongol, ambos estudantes em Moscou (Moscovo, no caso) nos anos 60. Simples, curto e bem escrito, com uma técnica narrativa impecável, O Planalto e a Estepe é um belo livro. Buscarei outros do autor. 

 

Epistolário

Se alguém ainda duvida de que o fim da correspondência em papel foi uma tragédia, que leia primeiro Vladimir Nabokov escrevendo sobre a obra-prima de Evelyn Waugh:

(…) I have been reading (…) Brideshead Revisited which is very amusing and charming here and there, but is, on the whole, trash (and terribly voulu at the end). [carta a Edmund Wilson, 8/3/1946]

e depois, Waugh sobre a obra-prima de Nabokov:

Lolita. I only remember the smut. The Yankee edition is full of very high-brow allusions. It set me wondering whether there was a modern counterpart to Bowdler (who excised smut from works of literary merit) whose office is to introduce ‘literary merit’ into smut. [cartão postal a John Donaldson, 18/11/1958]

(me lembrando aqui do formspring do Lord Ass, onde os dois turrões eram favoritos da casa e sabiam se comportar)

He worked from Life – parte II

As dificuldades em “trabalhar a partir da Vida” começam ao se tentar colocar a Vida dentro da ficção. Ao contrário do que parece, a afirmação não é óbvia nem o trabalho é simples.

Começando pela obviedade, o leitor do conto Another Rare Visit with Noah Danzig terá reparado na ação que deixou o narrador tão aborrecido: após uma série de encontros com o Noah Danzig, ao ler a versão final de seu mais recente romance, ele (narrador) se viu retratado naquelas páginas, incluindo ricos detalhes sobre sua – suposta – aparência vulgar e seus maus modos à mesa. Em outras palavras, Noah Danzig simplesmente teria “registrado” seus encontros com o jornalista em uma obra de ficção, assim como Saul Bellow “registrou” seus irmãos, sua ex-mulher, o amante dela, em Herzog. Exageros, distorções, caricaturas, uma forçada de mão aqui ou acolá fariam parte do jogo. O importante seria o registro de uma situação “real”, retirada diretamente da “Vida”.

A dificuldade com tal visão é que essa transposição é tão cheia de problemas a ponto de sequer ser preciso entrar em teorias complicadas para explicar sua virtual impossibilidade. Na prática, basta dizer que ela quase nunca funciona. Qualquer um que tenha tentado “registrar” ficcionalmente a mais minúscula e ridícula cena do cotidiano sabe do que estou falando. Assim como sabia Evelyn Waugh, quando escreveu o trecho da carta abaixo a um autor estreante que havia lhe enviado um manuscrito:

I have some acquaintance with the county about which you are writing and, I must tell you, the atmosphere of your story seems very false to my own experience. In particular the incident of d’Arcy going poaching with a tramp appears wildly improbable. Very likely it is based on some actual occurrence; half the problem of a novelist is to make real life credible, and you have certainly failed in this case. The conversations of another class are particularly difficult to report.

“To make real life credible” é uma ótima definção de “escrever ficção”. Dessa lição de Evelyn Waugh creio ser possível tirar dois corolários: 1)  “trabalhar a partir da Vida” não significa “copiar a Vida”; e 2) não há “pessoas reais” ou “situações reais” em um romance ou conto. Se houvesse, o livro provavelmente seria ruim. A proporção “grandes romances” vs. “grandes biografias” não é acidental, como tampouco é acidental a tendência de muitas biografias contemporâneas de se moverem para o terreno romanesco.

Um segundo e último ponto é que, mesmo essa tentativa de dar credibilidade à Vida é ridiculamente difícil. Orhan Pamuk não é nenhum amador, convenhamos, mas é impossível não se identificar com sua queixa, quando ele responde da seguinte forma a pergunta de um jornalista querendo saber se escrever havia se tornado mais fácil para ele ao longo do tempo:

Unfortunately not. Sometimes I feel my character should enter a room and I still don’t know how to make him enter. (…) I’ve been writing fiction for the least thirty years, so I should think that I’ve improved a bit. And yet I still sometimes come to a dead end where I thought there would never be one. A character cannot enter a room, and I don’t know what to do. Still! After thirty years.

Trinta anos, uma dúzia de romances, um Nobel e ele não consegue fazer um personagem entrar em um aposento qualquer. É difícil assim mesmo. Agora pensem no que significa “trabalhar a partir da Vida”.   

He worked from Life

O conto Another Rare Visit with Noah Danzig, de Joseph Epstein, é curto, engenhoso e vale muito a pena. Desde o primeiro parágrafo, narrado em primeira pessoa da ala psiquiátrica de um hospital, o leitor quer saber a todo custo os detalhes da ligação entre o jornalista-narrador e o famoso escritor Noah Danzig, facilmente reconhecível pelos mais atentos como o romancista Saul Bellow.

Não vou resumir o enredo, a história é boa e, como eu já disse, merece ser lida. O que me interessa é que, lá pelas tantas, após a aproximação com o escritor de sucesso ter despertado sua vaidade, o jornalista se vê indignado e afrontado ao descobrir que Noah Danzig o havia usado como modelo para um personagem menor no romance que estava escrevendo.

Ferido em seu orgulho – e em sua intimidade, supõe-se – o narrador do conto exclama: Why did Noah do it? He worked from Life, everyone knew that about him, but I had supposed I would be an exception (…)

Esse trecho me pegou porque a relação da “Vida”, assim, com maiúscula, e a criação literária é um tema que muito me interessa. É notório que Bellow “worked from Life” (para os voyeurs, esta excelente palestra de Robert Adams esquadrinha “Herzog”, dando todos os detalhes biográficos da escabrosa trama) e qualquer leitor é capaz de intuir um certo contínuo entre os grandes escritores, indo de autores que “trabalham a partir da Vida” – Lima Barreto, Vargas Llosa, o próprio Bellow – até outros bastante opacos a ela, como Borges. Estou certo de que deve haver uma produção acadêmica imensa sobre o assunto e agradeço desde já se algum leitor quiser compartilhar algo de interessante comigo, já que essa não é bem a minha seara.

Como não-acadêmico, e praticante da arte da escrita eu mesmo, fui forçado a abordar o problema por outros ângulos, e um dos mais interessantes e divertidos acabou sendo o de investigar o que os próprios autores tinham a dizer sobre o tema. Por isso, me proponho a fazer uma série de posts nos próximos dias com a opinião de alguns escritores sobre a relação entre Vida e ficção, o escritor e seus personagens, etc.

Por último, só queria deixar claro que não estou falando de personagens auto-biográficos, roman à clef, etc. Ou, ao menos, não apenas disso. O que procuro é algo mais sutil e difícil de definir, por isso gostei tanto da formulação do narrador de Another Visit with Noah Danzig. Talvez o mais claro seja dizer que tento entender o que significa “trabalhar a partir da Vida”.

Satanás

(…) the intelligence, the sensibility, the spirituality of Satan is always exactly proportionate to the intelligence, sensibility and spirituality of the individual in whom he is at work. (Aldous Huxley, Grey Eminence, capítulo 6).